desci as escadas na rotina desvairada e atravessei o pequeno átrio em busca do sol que fazia lá fora, amarelo de outono.
um grupo de garotos do 5º ano empurrava-se contra as paredes laterais, socava-se, gritava.
parei. a retina, em esforço, tentava captar caras e movimentos.
parei. a retina, em esforço, tentava captar caras e movimentos.
tudo desfocado.
mais rápida e perfeitamente nítida, a minha voz deixou um ralhete e a ordem para irem brincar, mas brincar a sério, para outro lado. o ponteiro galopava, devorando segundos e eu na indecisão de rodar ou não a objetiva e me aproximar deles, que me não viam, que me não ouviam. a mão estendeu-se-me e agarrou o braço de um que me olhou como se, à sua frente, estivesse a vampira com que eles são tu-lá-tu-cá. repeti a ordem. tornei a repetir e eles sem perceberem que lhes falava.
em que película estariam aquelas cabeças?
o ponteiro galopava e devorava já minutos. um dos rapazes começou a correr para a esquina do pavilhão. carreguei no botão - uma mão e depois seis ou sete vultos desfocados e uma voz que dizia em legenda à fotografia esta tem a mania que manda!
avancei uns quantos passos, fiz zoom, mas o ângulo não era o propício.
prossegui à procura do sol que me esperava de raios abertos, sorridentemente quentes. imobilizei-me e fiquei a sorrir para a lente da máquina, programada para mim.
a sombra de uma árvore juntou-se à minha. só as sombras, não alongadas, se desenhavam no chão...
os meus momentos! os momentos de silêncio fotográfico não registáveis... como me reconfortam e me devolvem as cores! nítida esta imagem, perfeita, na imperfeição do objeto fotografado.
os meus momentos! os momentos de silêncio fotográfico não registáveis... como me reconfortam e me devolvem as cores! nítida esta imagem, perfeita, na imperfeição do objeto fotografado.
volto a entrar no pavilhão decidida a subir as escadas e a ir até à sala dos professores, onde não iria tirar nenhuma fotografia, porque todas elas seriam iguais, porque quase todos querem ficar bem na fotografia e se esquecem que também há que saber manter o diafragma da máquina fechado às obsessões cratianas.
mas não subi as escadas. uns gritos entraram-me pelos orifícios da máquina e ficaram a retinir dentro dela. tremida ficou a imagem de quatro miúdas que a pontapé e encontrões se aproximavam do simpático e paciente "Moedeiro".
de novo, a retina foi mais lenta que a voz. tinha perdido os raios de sol que trazia plenos de silêncio. parem lá com isso, se fazem favor! a fotografia ficou imóvel, suspensa na memória e eu fui à procura da outra anterior onde havia ainda brilhos a rechearem as minhas células. não tive tempo de a rever. o clique captou-me de cara espantada e de olhar triste pendurado no corrimão das escadas, depois de ter ouvido ela é parva!
parei e cliquei de novo. fui apanhada a tentar subir as escadas com esforço. o vulto de um ex-aluno, agora no 12º ano, sorria-me com dentes desarmados de arames não ligue, professora, isto está de doidos! olhei-o e articulei chega ao po..., a máquina disparou-se mesmo sem lhe premir o botão. ... (se) der! continua irónica, professora! já lá estás, Filipe, no poder, já lá estás!
calaram-se os disparos, enquanto alguns professores desciam a escada a rir, felizes porque se encaixavam no centro da película e das metas curriculares. não os fotografei. virei a objetiva para mim, estendi o braço até onde pude e disparei.
calaram-se os disparos, enquanto alguns professores desciam a escada a rir, felizes porque se encaixavam no centro da película e das metas curriculares. não os fotografei. virei a objetiva para mim, estendi o braço até onde pude e disparei.
Um belo texto, Laços! Muito representativo da situação de um professor.
ResponderEliminarxx
Também captei muitas fotos desfocadas!
ResponderEliminarBelo texto de fina ironia!
Abraço
Um texto bem escrito que me deu imenso prazer em ler...Não sei se nós ou laços..ou as duas coisas, a objectiva deu-me a imagem de quem também andou por esses "corredores" e não ficou em nenhuma fotografia...para a posteridade.
ResponderEliminarBeijo amigo
Graça
beijo.
ResponderEliminarbelo texto - gostei de ler. muito
Em algumas ficaste. Queres apostar?
ResponderEliminarAbraço grande
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarTemos que desamarrar os nós que nos trazem o coração apertado...mas como o poderemos fazer? Se calhar com esperança...
ResponderEliminarBeijinhos
Amiga, guarda só as fotografias antigas, aquelas em que sorrias para a objectiva, Estas não valem !
ResponderEliminarExcelente, irónico e profundo texto.
beijinho
.
ResponderEliminar.
. em suma . na demanda incessante da Estrela mayor .
.
. um beijo meu .
.
.
por vezes a vida é assim como a tua fotografia, completamente desfocada, por isso temos de ir em frente, rumo ao sol, nem que seja nas palavras.
ResponderEliminarbelo texto.
:)